Ícone do site www.qtemprahj.com.br

Crônicas, brincadeira séria

Por Eliana Haberli

Nós escrevemos crônicas neste blog, cinco escritores ocasionais e diferentes, cada um com a sua mania. Eu sempre me pergunto o que é afinal uma crônica, essa palavra meio indefinida e bastante confortável para gente que quer registrar memórias fugidias, ameaças de contos e interpretações pessoais da realidade.

“Crônicas não foram feitas para durar”, diz a editora Graziella Beting, na introdução do livro “Gente às Janelas, crônicas”, sobre João do Rio. Ela prossegue na explicação. “Crônicas são textos breves, por natureza efêmeras, escritas geralmente de um dia para outro, com um lastro na realidade do noticiário e outro na ficção, em doses bastante variáveis dessa combinação.” Bom ponto de vista. No entanto, a diretora da Editora Carambaia, que publicou o livro, imediatamente muda o rumo da explicação, justificando sua escolha de apresentar textos escritos há um século atrás. “É um aparente contrassenso” diz. “Mas, quando João do Rio escrevia uma cônica, sabia que estava escrevendo algo mais que um texto perecível.”

Eis aí, leitores. Há cronistas e cronistas e pode-se definir à vontade essa categoria, mas não se chega a consenso. João do Rio, jornalista carioca do início do século 20, curioso e bem vestido, deixou a redação do jornal (coisa que seus colegas não faziam) e se embrenhou pelas ruas, pelas favelas, pela alma do povo, por histórias reais e ficções fantásticas. E acabou produzindo textos híbridos de invenção e realidade, uma novidade.

Novidade tão marcante quanto o Rio de Janeiro do seu tempo, onde ocorria uma transformação urbana profunda, com grande destruição dos bairros antigos do centro. Até morro derrubaram. As autoridades diziam que “o Rio civiliza-se’. João do Rio dizia que a cidade vivia “um esforço despedaçante para ser Paris”.

“Gente às Janelas” é a crônica de abertura do livro. O escritor conta que passeava com um visitante inglês pela cidade e o homem não parava de admirar as pessoas olhando para a rua. Mulheres, trabalhadores, crianças, gente de todo o tipo olhava para fora, geralmente às janelas. Ninguém ficava “in”, toda atenção era “out”.

O visitante achou que as pessoas esperavam ver alguma coisa, como por exemplo, a passagem de uma procissão. João do Rio explicou que ninguém esperava nada, o pessoal era assim mesmo, independente de classe social. E o estrangeiro ficava cada vez mais pasmo. João do Rio explica que pensara até em escrever um livro sobre o papel da janela na civilização carioca.
Impossível resumir essa crônica das janelas, simples e profunda demais. Ótima escolha, Graziella. Ela foi publicada no jornal A Notícia em 1910. Nesse mesmo ano, o cronista entrou para a Academia Brasileira de Letras. Seu verdadeiro nome era Paulo Barreto.

Deixando de lado o grande mestre João do Rio, penso no comportamento das pessoas hoje nas casas e nas ruas, um século depois. Quem ainda vai para a janela olhar a vida? A atenção não é mais “out”, é “in”. As pessoas olham para dentro, para a telinha do celular. Dentro do ônibus cheio, de gente de todo o tipo, quase ninguém desperta um olhar curioso ou se permite ter um. Até a rua é pouco atraente e olhar à janela que tinha um toque de leveza, ficou coisa pesada.

Um complemento que me parece obrigatório é que décadas depois de João do Rio, o compositor Chico Buarque criou “A Banda”, que de certa forma chega perto desse tema da curiosidade à janela. Mas também a banda já passou.

Sair da versão mobile